quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Um rio quarentão



Os primeiros registros fonográficos de Paulinho da Viola foram feitos entre os anos de 1965 e 1968, tanto com o show Rosa de Ouro, que também envolvia outros baluartes do samba, como Clementina de Jesus, Aracy Cortes e Hermínio Bello de Carvalho (na direção do espetáculo); quanto com seu trabalho no grupo A voz do morro, que reuniu uma pequena elite das escolas de samba cariocas da época (Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro, José da Cruz e Elton Medeiros). Também em 1968, ele gravaria o disco Samba na Madrugada, em parceria com Elton Medeiros. Essas gravações formam a primeira parte da carreira de Paulinho, uma etapa em que o jovem sambista se consolidou na ala de compositores da Portela e, do "lado de lá" do Rebouças,  promoveu uma ponte entre a música tradicional dos subúrbios cariocas e a nova "MPB", já numa fase pós-bossa nova e que se consolidava nos festivais e nos discos.
Somente no fim de 68, Paulinho lançaria seu primeiro disco solo, um álbum que já trazia algumas obras-primas de sua lavra, como "Coisas do mundo, minha nega", "Sem ela eu não vou" e "A gente esquece"; mas que soa um pouco barroco, em função do excesso de orquestrações e salamaleques da produção musical. Apenas em Foi um rio que passou em minha vida (capa acima), lançado em 1970, há redondos quarenta anos portanto, Paulinho gravaria um LP solo que realmente começaria a soar como Paulinho da Viola. O mesmo (genial) Gaya do disco de dois anos antes dosou melhor as cordas e as redundâncias dos arranjos e as gravações passaram a soar mais leves, mais integradas à poesia e à musicalidade do compositor e à ginga do samba. Neste disco, Paulinho se afirma em definitivo como um grande compositor dentro da história da música brasileira, não apenas pelo clássico que deu nome ao disco, mas pelo conjunto impecável de composições reunidas no trabalho: "Para não contrariar você", "Estou marcado", "Mesmo sem alegria", "Jurar com lágrimas", a irônica "Papo furado" (com que Paulinho dá uma linda alfinetada nos alcaguetes da ditadura militar), "Não quero ver você assim" e a linda "Tudo se transformou".
Em 1970, a música "Foi um rio que passou em minha vida" foi cantada como samba de esquenta na concentração da Portela - que naquele ano chegaria ao título. Em 1998, a escola repetiu a dose e cantou o samba na concentração com a participação do próprio Paulinho nos vocais (link abaixo).



 

Censura?


O texto abaixo foi retirado do blogo do escritor e historiador Guilherme Scalzilli

"Imaginemos. Dois candidatos chegam ao segundo turno com iguais chances de eleição. Na véspera da votação, depois que os programas eleitorais terminaram, um jornal importante publica matéria reconhecidamente falsa, baseada em testemunho sem comprovação, acusando um dos pleiteantes de algo muito, muito feio. As emissoras aproveitam e repercutem a “matéria”, colocando-a na conta do jornal.
Previsivelmente, o infeliz perde a eleição. Nas semanas seguintes, porém, consegue provar sua inocência e a má-fé dos veículos que o prejudicaram. Como remediar um dano desses? Que valor deveria ter a multa ou a indenização impostas ao jornal? Mesmo um radical encerramento de suas atividades remediaria quatro anos sob o comando de uma farsa política?
A única maneira legítima e razoável de prevenir esse absurdo é proibir judicialmente a publicação de determinados conteúdos que podem causar danos irreparáveis ao processo eleitoral. Pois a imprensa corporativa chama isso de “censura”. Ela quer interferir nos rumos do país como um
Super-Poder magnânimo que possui total liberdade e nenhuma das restrições legais que atingem os cidadãos ordinários. E o Judiciário, constrangido lá com suas próprias desmoralizações, aceita ser achacado por essas famílias empresariais de aspirações pouco democráticas".

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Francis e o efêmero da afetação


Paulo Francis, que completaria 80 anos este mês, não morreu devido ao suposto erro médico que confundiu um lento e vigoroso ataque cardíaco com uma bursite. Francis morreu vitimado pela rara e explosiva combinação de inteligência, empáfia, carisma e obtusidade que lhe temperaram a verve. Na discussão sobre jornalismo, sempre fiquei meio cismado com o discurso segundo o qual Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo e quejandos seriam apenas uma cópia menor, imperfeita, menos letrada, de Francis. Este, sim, segundo o tal raciocínio, um exemplo maior de talento, cultura e brilhante mordacidade. Bobagem. Francis foi apenas mais um aríate debochado e despudorado do conservadorismo que sempre segurou as rédeas do jornalismo de massa em nosso país.
Nunca me pareceu que suas (auto-)anunciadas qualidades pudessem servir de exemplo para nada ou ninguém. Seja porque nunca consegui divisar, nele, nada além do cronista racista, leviano, plagiário e fanfarrão; seja porque acredito num jornalismo que se constroi com fatos, confronto dos contrários, entrevistas e muita transpiração. Acredito num ofício que é feito de impressões, mas também de apuração, seres humanos e de rua (não necessariamente no sentido físico, mas a rua como o olhar, como a abertura para a alteridade). Francis foi o contrário disso, foi a personificação de um ofício meio dândi, auto-indulgente e profundamente cínico. Algo mais próximo do teatro e da performance - teatro e performances ruins - do que do jornalismo. A vida real sempre me pareceu mais provocadora do que os trocadilhos emplumados e supostamente "provocadores" de Francis.
Ao arrotar que os diretores da Petrobras mantinham dinheiro no exterior, ele caiu na armadilha que vendia para seus leitores - a confusão entre jornalismo e uma outra coisa que se equilibrava entre a literatura (medíocre), a embriaguez, o ranço conservador e a afetação que costuma ocupar o lugar da falta de argumentos racionais. Sem provas que materializassem seu "furo", atravessou a fronteira que separa o jornalismo real do opinionismo leviano, a vida real do esnobismo novaiorquino. Foi processado e suas coronárias não aguentaram o tranco.
Nelson Hoineff lhe dedicou um bom e belo documentário no ano passado. Soube reconstruir de modo honesto a imagem controversa do jornalista, mas não explorou de modo enfático nenhum flanco mais constrangedor para a memória de seu protagonista. Preferiu focar o carinho dos amigos, onde afinal persiste a única posteridade possível para um doxômano como Francis, escritor frustado que não deixou filhos nem nenhuma realização artística/jornalística de relevo. O efêmero do cotidiano, onde o jornalismo reinventa seu enredo diariamente, segue arrastando seus textos e comentários - todos datados - para o esquecimento. A vida real (e jornalismo real, quem sabe), afinal, é sempre mais forte.

O PIG, os juristas e o falso ataque à democracia


Entre os juristas e professores de Direito signatários do manifesto que reafirma o compromisso do Governo Lula com a democracia no País, estão alguns cearenses. Entre eles, Martônio Mont'Alverne, procurador-geral de Fortaleza e professor da Unifor; e Márcio Vasconcelos Diniz, vice-diretor da Faculdade de Direito da UFC. O manifesto chamado de "Carta aos Brasileiros" é uma resposta às recentes e cada vez mais veementes manifestações da imprensa nacional segundo as quais a democracia brasileira sofre riscos com a provável eleição de Dilma Roussef para a presidência da República, o que, de acordo com jornais como Folha e Estadão e revistas como Veja (lideranças do, nem tão ironicamente, chamado Partido da Imprensa Golpista - PIG), daria continuidade aos atentados à democracia e liberdade de imprensa supostamente praticados e estimulados pelo governo do presidente Lula e por seu partido, o PT. 
Para este blog, o único atentado do gênero durante esta quadra eleitoral  foi a investida da procuradora Sandra Cureau contra a revista Carta Capital, que já anunciou publicamente sua simpatia à candidatura de Dilma. Esse sim, um vexaminoso caso de afronta à liberdade de imprensa (através da tentativa ilegal de estrangulamento das finanças do veículo); mas um evento que, como sói acontecer nesse país de jornais e revistas como os citados acima, não reverbera na chamada grande imprensa. Se o presidente está ou não errado em criticar os procedimentos (cada dia mais questionáveis) da grande imprensa, isso não vem ao caso. Mas tem todo direito de fazê-lo. Afinal, a liberdade de expressão é ou não para todos? 
Abaixo, a íntegra do documento (retirada do blog do jornalista Paulo Henrique Amorim). A lista completa dos signatários pode ser acessada aqui.

"Em uma democracia, todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou pela mediação de seus representantes eleitos por um processo eleitoral justo e representativo. Em uma democracia, a manifestação do pensamento é livre. Em uma democracia as decisões populares são preservadas por instituições republicanas e isentas como o Judiciário, o Ministério Público, a imprensa livre, os movimentos populares, as organizações da sociedade civil, os sindicatos, dentre outras.
Estes valores democráticos, consagrados na Constituição da República de 1988, foram preservados e consolidados pelo atual governo.
Governo que jamais transigiu com o autoritarismo. Governo que não se deixou seduzir pela popularidade a ponto de macular as instituições democráticas. Governo cujo Presidente deixa seu cargo com 80% de aprovação popular sem tentar alterar casuisticamente a Constituição para buscar um novo mandato. Governo que sempre escolheu para Chefe do Ministério Público Federal o primeiro de uma lista tríplice elaborada pela categoria e não alguém de seu convívio ou conveniência. Governo que estruturou a polícia federal, a Defensoria Pública, que apoiou a criação do Conselho Nacional de Justiça e a ampliação da democratização das instituições judiciais.
Nos últimos anos, com vigor, a liberdade de manifestação de idéias fluiu no País. Não houve um ato sequer do governo que limitasse a expressão do pensamento em sua plenitude.
Não se pode cunhar de autoritário um governo por fazer criticas a setores da imprensa ou a seus adversários, já que a própria crítica é direito de qualquer cidadão, inclusive do Presidente da República.
Estamos às vésperas das eleições para Presidente da República, dentre outros cargos. Eleições que concretizam os preceitos da democracia, sendo salutar que o processo eleitoral conte com a participação de todos.
Mas é lamentável que se queira negar ao Presidente da República o direito de, como cidadão, opinar, apoiar, manifestar-se sobre as próximas eleições. O direito de expressão é sagrado para todos – imprensa, oposição, e qualquer cidadão. O Presidente da República, como qualquer cidadão, possui o direito de participar do processo político-eleitoral e, igualmente como qualquer cidadão, encontra-se submetido à jurisdição eleitoral. Não se vêem atentados à Constituição, tampouco às instituições, que exercem com liberdade a plenitude de suas atribuições.
Como disse Goffredo em sua célebre Carta: “Ao povo é que compete tomar a decisão política fundamental, que irá determinar os lineamentos da paisagem jurídica que se deseja viver”. (http://www.goffredotellesjr.adv.br/carta.htm#um). Deixemos, pois, o povo tomar a decisão dentro de um processo eleitoral legítimo, dentro de um civilizado embate de idéias, sem desqualificações açodadas e superficiais, e com a participação de todos os brasileiros".


terça-feira, 21 de setembro de 2010

De tirar o sono

 

As Variações Goldberg, de Bach, ganharam importantes leituras ao longo do século XX. Do violoncelista brasileiro Antonio Menezes ao francês Yo Yo Ma, do russo Rostropovich ao violonista norte-americano John Williams, alguns gênios da música mundial já se debruçaram sobre a obra. Mas a versão mais famosa das peças - talvez pelo fato das Variações terem sido compostas para o cravo - é a do pianista canadense Glenn Gould (1932-1982), um virtuose cheio de esquisitices (entre elas, tocar sempre usando a mesma cadeira que havia ganho do pai ainda na infância) que assombrou o mundo ao gravar os 32 trechos da obra apenas aos 22 anos. Composta inicialmente para amenizar a insônia de um conde, as Variações Goldberg formam um conjunto de tirar o sono do intérprete que se arriscar entre seus labirintos, que levam ao extremo o dinamismo dos contrapontos de Bach.
Partindo de uma ária inicial, o intérprete tem que atravessar três dezenas de variações do mesmo tema, o que, longe de soar repetitivo é simplesmente surpreendente pela riqueza e criatividade impostas à melodia e ao acompanhamento. Há um impressionante rigor formal, mas também amplas possibilidades de liberdade criativa. Gould (foto acima) - que encerrou sua carreira como concertista aos 30 e poucos anos e voltou-se completamente para a carreira de estúdio - deixou quatro gravações da obra. Duas ao vivo, respectivamente de 1954 e 1959; e duas de estúdios: a de 1955, que lhe projetou para o sucesso mundial, e a de 1982, ano de sua morte. Esta segunda gravação em estúdio foi registrada em dois sistemas digitais, um da Sony e outro da Mitsubishi, com as mesmas especificações técnicas. Segundo a biografia do pianista, escrita por Otto Friedrich, tamanha era a acuidade auditiva de Glenn que os engenheiros de som ficaram assombrados quando o pianista ouvia as gravações e distinguia os sistemas com a maior facilidade.
No cinema, trechos das gravações de Gould podem ser ouvidos nos filmes O silêncio dos inocentes (1991) e Hannibal (2001).
Abaixo, Gould executando as variações de 1 a 7.


sábado, 18 de setembro de 2010

Eucanaã Ferraz


"Abra-se tudo
em grande-angular:

alas a ela, abra-se tudo
em salas que se abram

em salas abertas, salões,
e o que se fechara

antes desabroche
numa sucessão de estrelas

em pleno dia claro.
Abra-se o teto

do planetário, abra-se
o coração do fogo

e nele toda dor
torne a nada e

nada lhe resista
e por onde passe alastre

sua leveza. Alas a ela,
e que ela me leve.

Porque nela tudo parece
mover-se sobre salto

alto, sobretudo a alma,
a alma que parece calçar

a mesma sandália
que as palavras e os gestos

dela, alas
a ela, que, assim

alta,
como que vai

descalça e dançasse
sobre-além dos alarmes

e do medo, largando
na sua valsa

um rasto só de beleza.
Alas a ela".

"Valsa pra Graça", de Eucanaã Ferraz. Poema retirado do livro Cinemateca (Cia. das Letras, 2008)

A japonesa que encantou Chick Corea


O vídeo abaixo traz o registro de uma linda versão de "Spain", com Chick Corea - como vocês sabem, autor da música - e a pianista japonesa Hiromi Uehara. O primeiro dispensa maiores apresentações. Já Hiromi é uma enfant-terrible que desde 2003 vem assombrando a crítica especializada e arrebanhando uma penca de prêmios de jazz pelo mundo. Sua colaboração com o pianista Chick Corea rendeu o lindo CD duplo Duet, lançado em 2007 (capa acima) e um dos discos de jazz mais bem sucedidos em termos de venda dos últimos dez anos. Além de "Spain", o disco traz peças como "Bolivar Blues", "How Insensitive" e "Humpty Dumpty". Só para se ter uma ideia do prestígio de Hiromi, há pelo menos trinta anos, Chick Corea não topava um projeto de duetos de pianos, desde sua parceria antológica com Herbie Hancock em 1978. Portanto, atenção para essa japonesinha.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O virtuose e o evangelho



No próximo dia 26 de setembro, completa-se uma década da morte de Baden Powell. Em julho de 1999, quando de sua passagem por Fortaleza para um show no anfiteatro do Dragão do Mar, este blogueiro, então repórter do Caderno 3 do Diário do Nordeste, entrevistou o violonista. Na época, Baden havia se convertido à igreja evangélica, o que lhe causava certo embaraço na hora de interpretar alguns seus clássicos, especialmente aqueles ligados à linhagem dos afro-sambas. "Eu posso cantar, só não faço louvar", disse. A entrevista se deu por telefone, com Baden falando de Natal, destino anterior de sua turnê pelo Nordeste. Ao final do texto recuperado da entrevista, um vídeo com uma apresentação de Baden em Paris quatro meses antes do show em Fortaleza.

Pergunta - Como será o show de hoje à noite? (N.R. - A matéria foi publicada no dia 16 de julho de 1999).
Baden - Será um show bem brasileiro acima de tudo, com músicas do nosso patrimônio musical. De Pinxinguinha à Bossa Nova e outros clássicos da nossa música popular. Porque eu defendo as teoria de que todo grande clássico pode vir a ser popular e vice-versa. Além disso, também tem algumas músicas do seu amigo Baden Powell, minhas parcerias com o Vinícius, Paulo César Pinheiro. Mas é sempre brasileiro, uma coisa brasileira acima de tudo.

Pergunta - Uma marca dos seus shows são as conversas com o público. Essa caraterística também vai estar presente no show de logo mais?
Baden - No show eu falo bastante, conto muitas histórias. A minha vivência com o Vinícius. Eu morei um tempo na casa dele, onde nós compomos a maior parte de nossas músicas. Enfim, eu conto histórias, me sinto na obrigação de contá-las, sinto-me um professor vamos dizer assim, especialmente para os jovens. Para passar aos jovens alguma coisa do que a gente fez, porque são eles que vão levar a vida adiante. Sem os jovens, o mundo todo pára. E eu acredito muito nos jovens, acho que nós estamos prester a ver uma nova geração surgindo, que inclusive vai ser mais forte e criativa do que a geração da bossa nova. O que falta é chance de mostrar. Se eles se unissem e fizessem algo juntos, nas universidades não sei, as TVs seriam obrigadas a mostrá-los. Todos filhos da pátria.

Pergunta - Você é um artista que faz uma grande sucesso nos EUA, na Europa e até mesmo no Japão. Chega a te incomodar o fato de que a repercussão no Brasil não seja a mesma do exterior?
Baden - Não me incomodo não. Eu sou um artista que tem os pés no chão. Não sou de cartaz, como o Roberto Carlos, por exemplo, que vende milhares de discos. Eu não sou um artista da moda. Algumas músicas minhas são até conhecidas, algumas que a Elis gravou; mas a música instrumental não faz tanto sucesso com o povo. Então é uma coisa mais do que normal. A música instrumental sempre foi uma coisa muito difícil para o povo. Eles conseguem decorar as letras das músicas cantadas, mas não se interessam tanto pela música instrumental.

Pergunta - Uma notícia que repercutiu recentemente no meio musical brasileiro foi a de sua conversão à igreja evangélica. Como se deu esse processo? Qual foi o motivo da conversão?
Baden - Foi uma questão de sabedoria. Eu sempre fui muito católico e sempre me interessei muito por religião, tanto que fiz os afro-sambas com o Vinícius. Mas de tanto ler, de tanto me informar, cheguei à conclusão de que a verdade é Jesus Cristo. E fiquei maravilhado com isso. Acho que alcancei o nível mais alto na minha carreira com isso.

Pergunta - Mas como você encara hoje aquela parte de sua obra que é ligada aos afro-sambas, por exemplo?
Baden - Eu apenas não louvo, mas falo sobre isso e posso perfeitamente cantar. Louvar é que não pode. Então, algumas músicas eu não posso cantar porque são louvações. Eu não posso cantar a palavra saravá, por exemplo, porque é uma louvação ao Belzebu. Mas encaro isso naturalmente. Como eu disse, eu só não faço louvar.

Pergunta - Você costuma afirmar que, no seu caso, criador e intérprete nunca trabalham simultaneamente. Qual dos dois tem trabalhado mais atualmente?
Baden - Tudo isso tem uma fase. Quando é a fase do criador, por exemplo, eu nem pego no violão, porque aí você escreve muito. Já a fase do intérprete atrapalha a fase do criador porque eu tenho que estudar muito. De modos que acho que prefiro a composição, porque é uma coisa muito mais liberal. Mas estou atualmente na fase do intérprete.

Baden e os afro-sambas


"Afro-samba" foi a expressão adotada por Vinícius e Baden Powell para definir o conjunto de canções gravados no antológico disco homônimo de 1966. O termo é um tanto redundante se atentarmos para o aspecto miscigenado que funda a música brasileira e, no caso específico do samba, para a enorme contribuição da cultura africana à tradição do batuque e do canto aqui estabelecidos. A rigor, qualquer samba traz um carga afro em seus genes. Mas naquele contexto de efervescência da bossa nova, no entanto, o termo adquiriu um novo sentido na medida em que sinalizou para outras latitudes de nossa música que não eram apenas o cenário de mar, amor e flor que podia ser divisado nos apartamentos de Copacabana e Ipanema. E mesmo a batida do violão não era mais a de João Gilberto, com seus baixos contínuos; mas um novo furacão de notas e timbres bem ao estilo de Baden.
Baden nunca gostou do registro de 1966 – cuja qualidade sonora foi definida por ele como a pior possível, resultado do número limitado de canais (apenas dois)  disponíveis para a gravação. Tanto que, em 1990, regravou os afro-sambas para um disco promocional oferecido por um banco a seus colaboradores. Apesar da importância do novo registro, o disco levou quase vinte anos para chegar ao grande público, o que só foi possível graças à iniciativa da Biscoito Fino, que reeditou o material há alguns anos em CD (capa acima). O disco encanta pela radicalidade com que Baden e seus violão retornam a temas como “Canto de Ossanha”, “Labareda” e “Canto de Xangô”. “Os afro-sambas se eternizam e se estendem para além  da vida de seus criadores”, sintetiza o crítico Pedro Alexandre Sanches.

Jorge de Lima


"Tempo da infância, cinza de borralho,
tempo esfumado sobre vila e rio
e tumba e cal e coisas que eu não valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.

Há também essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.

Era daltônico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, não se sabe,
que muita coisa a um anjo se assemelha.

Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vós não os vedes, culpa não me cabe
de andar vestido em túnica vermelha."

Anjo daltônico - Jorge de Lima

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Um raro sabiá marrom


No fim dos anos 60, Alcione era apenas uma cantora do circuito Rio-São Paulo de boates. Até a noite em que Jair Rodrigues lhe viu em ação na Blow Up, tradicional reduto jazzista da pauliceia, e lhe apresentou a Roberto Menescal, que, na época, era diretor artístico da então toda-poderosa Philips. A partir daí, a maranhense de voz encorpada e rara percorreu um obscuro caminho de gravações entre compactos, trilhas de novela e os chamados "paus de sebos", aquelas coletâneas espalhafatosas e de repertório assistemático que eram lançadas anualmente reunindo novos nomes e artistas consagrados do cast dessas empresas. Eis que, em 1975, numa última aposta de fazer a carreira de sua pupila decolar dentro da gravadora, Roberto Menescal bancou a gravação do LP A Voz do Samba e Alcione explodiu com sucessos como "O Surdo" e "Não deixe o samba morrer".
O resto da história todos conhecem. Alcione gravou discos antológicos até a primeira metade dos anos 80, deixou-se seduzir por um repertório de gosto duvidoso e desde então ocupa uma curiosa posição na música brasileira: uma grande cantora que, a despeito de sua técnica e de seu alcance vocal, a crítica especializada (junto com boa parte do público sambista) não suporta ouvir. Mas rebobinando a história até seu princípio, a coletânea O samba raro de Alcione, que a Universal está lançando, coloca na roda justamente aquela série de gravações obscuras (ao lado de algumas sobras de estúdio e registros inéditos) que pavimentaram o início da carreira da Marrom - mas que foram obscurecidas pelo estrelato da fase pós-75.
Entre elas, estão "O sonho acabou", de Gilberto Gil; e "Figa de guiné", do então iniciante Nei Lopes; que formaram o primeiro compacto da cantora, lançado em 1972. Nessas gravações, é possível perceber a fluência de Alcione para além do samba, gênero para o qual a cantora foi "encaminhada" por Roberto Menescal para fazer frente às suas concorrentes das outras casas de gravação. No segundo compacto, lançado no ano seguinte, formado por "Tem dendê" (outra de Nei Lopes) e "Pinta de sabido" (da dupla mangueirense Rubens e Capoeira), também reunidas no CD, Alcione reafirma a nova condição de sambista por excelência. Dessa época, apenas a balada "Planos de papel", de Raul Seixas, gravada para a trilha da novela O Rebu, da TV Globo, foi o ponto fora da curva na imagem da negra bonita, simpática e, portanto, sambista - proposta pela Philips e seu departamento artístico.
Mas como Alcione sabia das coisas, o rótulo do samba nunca lhe pesou nem lhe soou artificial. Fosse o samba sincopado, o samba-canção (o CD traz a bela versão da Marrom para "Linda Flor") ou mesmo o samba de enredo, terreno em que raras vozes femininas se atreveram a entrar. Desse último gênero, o CD traz as versões de Alcione para quatro sambas do carnaval de 1975: "Imagens poéticas de Jorge de Lima", "O mundo fantástico do Uirapuru", "Festa do Círio de Nazaré" e "O segredo das minas do rei Salomão" - ainda hoje, exemplos da melhor produção de samba enredo de todos os tempos.
Entre os registros inéditos, aparece "Sabiá Marrom", do maestro francês Paul Mauriat, que compôs a música em homenagem a Alcione. Sobre a composição, o músico declarou em 1977: "Quando comuniquei à Phonogram minha intenção de gravar um disco só com músicas brasileiras, recebi um monte de discos de diversos artistas para ouvir e selecionar as faixas. Entre todos, os que mais me impressionou foi o de Alcione. Existe alguma coisa em sua voz que me deixou emocionado, uma espécie de véu, e cheguei a pensar que ela fumava. Depois é que vim saber que Alcione não fuma, é uma propriedade natural de sua voz. Além do mais, ela canta o que os franceses esperam ouvir de uma cantora brasileira".
Ao ouvir essas primeiras gravações - que embasariam o padrão de seus primeiros (e ótimos) discos -, pode-se dizer que, mais importante do que os caprichos dos gringos, Marrom já cantou o que os apreciadores do samba e da boa música brasileira esperam de uma cantora brasileira. Hoje, infelizmente, ela virou um pastiche auto-indulgente de si mesma. Pelo resgate da cantora grandiosa que Alcione um dia foi, essa coletânea da Universal é um dos discos mais importantes do ano.
Abaixo, as duas versões de "Sabiá Marrom". A primeira, instrumental. A segunda, na voz de Alcione (com letra de Totonho e Paulinho Rezende).

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Contrapé


Importa-me o sangue: pulsação de sonhos e sentidos. Não me convidem ao chá das cinco, que levarei comigo meu hálito de cachaça, de boemia; meu escarro amarelo recendendo o mau gosto da esperança. Deixo manchas em toalhinhas de mesa e pratas finas, é minha ventura gordurosa que quer impregnar a casa. Lá na frente, não suportarei ter saudades de mim, saudades do que poderia ter sido. O diabo costuma vender o caminho errado na encruzilhada, que alguém percorre em paralelo a si. É isso o diabo, o outro caminho, a curva à esquerda, a contramão de um mesmo. O espelho turvo em que você não consegue se ver, mas que te atormenta o sono servindo de paisagem para o mais assustador dos teus pesadelos: não ter sido! Não há imagem clara nesse espelho, a luz brota por trás, embaçando moldura e emoldurado; mas, como as meninas de Velásquez, você sabe que, no contrário do olhar, ali repousa um modelo, uma cartografia tua, um projeto teu a ser seguido não fosse o diabo. E aí um belo dia, você pára e pronto! Viveu outra vida. A essência virou dissonância e um câncer brotou dentro da tua alma. É isso o diabo: o contrapé de Deus.
Diabo é palavra, apenas. Assim como Deus. Além do horizonte, existe apenas a moral para fazer nossos genes seguirem em frente. É preciso matar Deus e o diabo, mas sem perder a ternura. A evolução só é possível pela poesia, que é o que nos arranca da condição de pedra, de pato, de boi. "Leve um homem e um boi ao matadouro, o que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi". Como o tempo não anda pra trás, malandragem, tu berra e berra e berra... E nenhum anjo torto virá em teu socorro.
Se a poesia está morta, tudo é impossível. Quero ser como o poeta que repousa no campo de batalha, semeando sob o cadáver insepulto da frustração os sonhos mais arrebatadores. Portanto, não me convidem para o almoço em família, que levarei minhas mãos sujas de terra, minhas unhas negras escondendo as sementes mais sujas e inglórias. Em meu banquete, servem-se os amigos, não os castradores. É isso o diabo, a receita do teu avesso, o feijão azedo que vai fermentar em tuas tripas até o dia em que tu cria coragem e se levanta da mesa. Enquanto esse dia não chega, tu vai dormir embalado pelo coro dos contentes. Ao conforto do clichê, prefiro a nota fora da pauta. Quem tem medo do perigo é o diabo. Ou Deus, sei lá.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Fanatismo


"O fanatismo consiste em redobrar o próprio esforço quando nos esquecemos do objetivo". George Santayana (1863-1952), filósofo hispano-norte-americano.

domingo, 5 de setembro de 2010

Mehldau resolve o dia


À medida que vou avançando na audição dos discos de Brad Mehldau, descubro marcas cada vez mais evidentes de nomes como Bill Evans e Keith Jarrett no estilo deste norte-americano nascido na Florida. No entanto, tão interessante quanto mapear essa genealogia nos arranjos e composições de Mehldau é perceber como ele percorre as sendas dessa escola em que se (con)fundem o hard bop, o free jazz, a música pop e a música clássica propondo soluções e polissemias bastante pessoais.
Sua série The Art of Trio, formada por cinco discos lançados entre 1996 e 2000 e gravada ao lado de Larry Grenadier (baixo) e Jorge Rossy (bateria), resume a primeira parte da trajetória de Mehldau. Day is done, lançado em 2005, é o disco da transição para uma segunda fase da carreira discográfica de seu trio, marcada pela saída do estilo mais "tradicional" de Rossy e pela entrada do baterista Jeff Ballard, que imprimiu uma pulsação mais vigorosa às provocações harmônicas e melódicas de Mehldau e Grenardier.
"Knives Out", que abre o disco, é um grande registro dessa nova fase do trio, com Ballard dobrando o tempo do tema melancólico dissecado por Mehldau e criando um clima de tensão permanente entre a melodia e a seção rítmica. O procedimento se repete em "Day is Done". Em "Artis", o trio vira uma formação agressiva de hard bop e as frases da bateria brotam de forma corajosa em meio ao encontro de baixo e piano, um grande momento do disco. Sozinho, Mehldau interpreta uma versão matadora de "Martha my Dear", dos Beatles - que também aparecem no CD com "She's leaving home", uma valsa ainda mais emocionante no arranjo do trio. "50 ways to love your lover", de Paul Simon, é outro grande momento do disco (abaixo, no vídeo retirado do youtube). 
Se Mehldau ainda não produziu o seu Köln Concert, já é responsável por alguns dos melhores discos de trios de jazz. 

A prioridade da Colômbia. E a de Serra


Mirar apenas a campanha feroz e diuturna que a chamada grande imprensa promove contra o Governo Lula acaba fazendo com que alguns militantes e simpatizantes do presidente percam o foco nas contradições e impasses brasileiros que o atual mandatário da República não conseguiu resolver ou mesmo acentuou ao longo dos últimos oito anos - seja porque não soube responder muitas das demandas que tensionaram e ainda tensionam sua gestão na direção de soluções e políticas inspiradas em ideais de esquerda; seja porque, sempre que tensionado nesse sentido, procurou refugiar-se no pragmatismo centrista, onde foi obrigado a dialogar com oligarquias e frentes conservadoras.
Em especial no campo da esquerda, há muitos estômagos sensíveis a tal interlocução, mas a ética da responsabilidade de quem assume o poder nas condições históricas em que Lula assumiu o País não poderia se furtar ao expediente. Por outro lado, o diálogo que o Governo passou a promover com novos interlocutores no plano interno (sentando-se à mesa, por exemplo, com movimentos sociais historicamente criminalizados) e, principalmente, no plano externo (onde passou a trilhar um caminho mais altivo, efetivamente multilateral, disposto ao diálogo com parceiros internacionais até então insondáveis pela diplomacia verde-amarela) tem se transformado num cardápio indigesto para a pauta dos diários e hebdomadários nativos. Em geral, há um véu de intolerância, preconceito e cinismo a cobrir o noticiário do Itamarati. E, não raro, há exageros jornalísticos que, na caça ao presidente petista, acabam colocando a torcida toda a favor de Lula.
Tome-se, por exemplo, o caso das Farc. Recentemente, o novo presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos reuniu-se com o presidente Lula (foto acima) e afirmou sua disposição em melhorar as relações (esgarçadas pelo governo de seu antecessor) com seus vizinhos sulamericanos. Entre eles, os "bolivarianos" de Venezuela, Equador e Bolívia. O Brasil, por sua posição no continente, foi o primeiro destino de suas viagens como chefe de Estado. Na pauta com Lula, Santos tratou de etanol e de cooperação tecnológica e econômica. Para a mídia nativa, a pauta era as Farc. O novo presidente colombiano limitou-se a dizer que trata-se de assunto interno de seu País e que qualquer mediação internacional teria de ser aprovada por seu governo. No entanto, como noticia a Carta Capital desta semana, se disse plenamente satisfeito com a postura brasileira sobre o tema: "O que mais interessa é a parte econômica. Essa questão das Farc é ultrapassada na Colômbia. Nossa agenda é outra".
Apenas a grande imprensa - que continua a orquestrar versões de tal forma delirantes sobre a suposta relação entre o núcleo terrorista colombiano e o governo brasileiro que renderiam um ótimo romance no melhor estilo realismo fantástico - parece não ter entendido o recado. Editoriais raivosos pulularam ao longo da semana e o sangue voltou a jorrar dos olhos de muitos colunistas. José Serra, avatar dos mesmos interesses que movem a economia simbólica (e financeira) de certas redações brasileiras, voltou a saracotear na berlinda da mídia bradando aos quatro ventos (ou aos quatro veículos: Veja, Folha, Estadão e Globo) que Lula desenvolve uma política externa prejudicial aos interesses do País e é negligente com o tema das Farc. "(Serra) disse que, se eleito, tratará proativamente as Farc como grupo terrorista. Continua candidato a alguma eleição do passado", define o editorial da Carta.
A título de justiça histórica, o governo brasileiro não classifica as Farc como grupo terrorista porque, no dizer do assessor especial da Presidência Marco Aurélio Garcia, "não é uma agência de classificação do que quer que seja". Lula, que declarou ser contra o terrorismo como instrumento de luta política, prefere se nortear por regras da ONU. Serra, decerto, preferiria a lista do Departamento de Estado dos EUA.