terça-feira, 28 de outubro de 2008

Cegueira do dia

"Onde estava todo esse dinheiro (desbloqueado para resgatar os bancos)? Estava muito bem guardado. Logo apareceu, de repente, para salvar o quê? vidas? Não, os bancos. Marx nunca teve tanta razão como agora. (...) Sempre estamos mais ou menos cegos, sobretudo, para o fundamental".
José Saramago, prêmio Nobel de Literatura, ao analisar a atual crise do sistema capitalista.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Marta, Kassab, Lurian e a filha de FHC

Confirmada a vitória de Kassab em São Paulo, é possível que a desastrada estratégia da campanha de Marta Suplicy - que quis saber de certas intimidades da vida pessoal do demista, como se o então candidato tinha filhos ou se era casado - acompanhe a ex-ministra por muito tempo, a exemplo do famigerado bordão "Relaxa e goza". No entanto, é sempre bom ficar atento para certos pesos e certas medidas com que a grande imprensa costuma embalar algumas coberturas, em especial o noticiário envolvendo protagonistas à esquerda dos interesses da Fiesp, da Febraban e quejandos. 
Nirlando Beirão, que assina a ótima coluna "Estilo" na Carta Capital, fez a melhor leitura do caso até aqui. Diz Beirão: "O clamor que a mídia de mão única suscitou a propósito de duas perguntas pessoais feitas pela campanha de Marta Suplicy acerca do evasivo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, foi tamanho, tão propositadamente escamoteador (afinal, as duas perguntas não foram responsdidas), que deixou no ar uma interessante discussão. Como administrar judiciosamente a informação que os eleitores merecem e o direito ao resguardo íntimo de um homem público?"
E continua: "O Globo, o Estadão, a Folha, a mídia grandona já tem isso muito bem resolvido: devassa total na vida do adversário, transparência zero (e estupor injuriado) quando se trata de seu protegidinho. (...) O que faz um eventual prefeito debaixo dos lençóis não é da conta de seus constituintes, mas também estranha que se queira fazer tabu de tão blindada intimidade. Freud explica. É a sexualidade que incomoda os moralistas da política. O resto pode". 
Daí que eu me lembrei do alvoroço midiático em torno do caso Lurian, estopim da derrota de Lula nas eleições de 1989; e do silêncio marmóreo em torno da filha de FHC com a jornalista da Globo, caso milimetricamente abafado pelos jornalões nas eleições de 1998. 
Marta perdeu. E por motivos que estão para além da tomatada pontual de sua campanha. Tanto que terminou a campanha com os mesmos 40% que lhe apontavam as primeiras pesquisas. Mas é sempre bom ter cuidado quando se nada a favor da corrente da mídia; sob pena de se assistir pela televisão e pelos jornais às mais cretinas aulas de moral e cívica.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Desvairadamente

Raphael Rabello em uma versão "caseira" para "Desvairada", do Garoto. Se você algum dia pensou em desistir de tocar violão, sua oportunidade é agora.


Perguntas e respostas

É de Décio Pignatari, a observação segundo a qual, em nossos dias, a resposta esterelizante - "não vale a pena" - parece substituir a pergunta criativa - "e agora, que fazer?". No campo da música popular, a maior parte de nossos artistas parece engessado pela primeira e são raros os que enfrentam a segunda de maneira franca. Entre estes, são ainda mais raros os que conseguem propor algo efetivamente interessante sem cair em certos maneirismos; dos quais um dos mais perigosos, a meu ver, é aquele que vê na mistura aleatória de linguagens, no cruzamento atabalhoado de informações, uma tábua de salvação estética. Em geral, eles atuam como o cozinheiro que se encanta com uma enormidade de ingredientes para sua refeição, decide usar todos e, por fim, acaba por anular as particularidades de cada sabor, as nuances de cada elemento usado no prato, servindo ao seu desafortunado cliente uma comida que não tem gosto de nada.
Um disco lançado recentemente enfrenta de maneira corajosa a provocação do poeta concretista, fugindo dessa tentação da "mistura" e propondo novas abordagens para a música popular. Trata-se do segundo volume da série Brasilianos, do quinteto de Hamilton de Holanda. Nesse trabalho, Hamilton leva a um patamar ainda mais alto a tensão e as experimentações a que tem submetido não só a tradição da música instrumental no Brasil mas os próprios limites harmônicos e timbrísticos do bandolim. Não à toa, por exemplo, se notabilizou por utilizar um instrumento de dez cordas, duas além das oito tradicionais. 
Nesse Brasilianos 2, a virtuose é o caminho percorrido pelo quinteto para afirmar seu próprio texto, sua própria expressão. O que não significa apenas correria ou malabarismos cromáticos. Mas a elaboração de texturas, diálogos e contrapontos que fazem transbordar pelo disco uma enorme sensação de liberdade - que começa na pouco usual constituição do quinteto (contrabaixo, violão, gaita, bateria e bandolim). 
Em "A vida tem dessas coisas", uma das faixas mais representativas do estilo e do vigor de Hamilton de Holanda, o afro-samba recebe pitadas de Villa-Lobos entre os bordões do contrabaixo e do violão. Em "O mundo não se acabou", a vertigem do maculêlê faz a cama para a cascata de notas com tal exuberância que poderia fundir a cuca de um crítico de jazz mais careta. "Carolina de Carol" aproxima o ijexá da salsa e tenta traduzir a confusão de uma brincadeira entre várias crianças - como o são, afinal, Hamilton e seus escudeiros pela absoluta falta de medo do perigo, do desconhecido. "Tamanduá" e "Estrela Negra" entregam o que o samba "Ano bom", que abre o disco, prometia. Rara felicidade.
Hamilton e seu quinteto podem até nem responder devidamente à provocação de Pignatari. Mas, no mínimo, propõem novas perguntas que são tão ou mais interessantes que uma resposta pronta. 
Abaixo, o quinteto em ação.


Tome cinco, Brubeck

Primeiro disco de jazz instrumental a vender mais de um milhão de cópias, Time Out (1959), do mitológico quarteto de Dave Brubeck, registra a melhor fase do grupo. Aqui, Brubeck assume de vez as informações eruditas que contagiaram sua música e que, apesar do nariz torcido de parte da crítica mais ortodoxa, fizeram cravar a melodia de músicas como "Take five" e a frenética "Blue rondo a la turk" no imaginário dos fãs de jazz. "Take Five", aliás, chegou a quinta colocação na Billboard na categoria música adulta contemporânea. Seguido de Paul Desmond, Joe Morello e Gene Wright, Brubeck, a partir da utilização de métricas estranhas ao jazz mais tradicional (em especial a valsa), dá saltos corajosos nos improvisos sem perder a capacidade de comunicação com o ouvinte. Em 2005, o disco foi eleito pela Biblioteca do Congresso Norte-Americano como um dos 50 álbuns que formariam o Registro Nacional de Gravações dos Estados Unidos. Ano que vem, Time Out completa 50 anos, mas continua soando surpreendentemente moderno. Um ótimo ponto de partida para quem quer ingressar no universo do jazz e um fascinante ponto de chegada para muitos músicos.

A discoteca Gabeira

Nas eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro, Gabeira pode até não sair vitorioso, mas já conseguiu a façanha de reunir uma constelação da MPB em torno de sua campanha. Ao todo, os marketeiros do Partido Verde usaram 13 músicas, cedidas por seus respectivos autores ou representes, além do jingle "O Rio de Gabeira". A informação é do blog do Ricardo Noblat.

Abaixo, o hit parade de Gabeira

1. Como uma onda - Lulu Santos
2.
Rio 40 graus - Fernanda Abreu
3.
Tudo Vale a pena - Pedro Luis
4.
Vem chegando o verão - Marina Lima
5.
Alagados - Paralamas
6.
Eu quero ir pra rua - Paula Toller
7.
Oito anos - Paula Toller
8.
Cariocas - Adriana Calcanhoto
9.
Saúde - Rita Lee
10.
Cidade Maravilhosa - Caetano Veloso
11.
Amanhã - Caetano Veloso
12.
Delírio dos Mortais - Djavan
13.
Samba do Avião - Tom Jobim
14.
O Rio de Gabeira

As músicas podem ser escutadas no seguinte link

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Cotação do dia

"Existem artistas que têm preço e os que têm valor. Quem tem preço, os caras têm dinheiro para comprar. Quem tem valor está sempre nas resistências"

Genival Oliveira Gonçalves, o rapper GOG, em depoimento reproduzido pela edição brasileira do Le Monde Diplomatique.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O Ponto Enredo de Pedro Luis e a Parede

Acabo de escutar Ponto Enredo, novo disco do Pedro Luis e a Parede. Trata-se do trabalho mais vigoroso do grupo carioca. A produção de Lenine explica em parte esse vigor. O músico pernambucano tem uma assinatura preciosa ao combinar timbres - ora espessos, ora bem pesados - de guitarras, cavacos distorcidos e contra-baixos com a riqueza dos ritmos afro-brasileiros, preservando a delicadeza de temas e letras que remetem, em sua maioria, ao universo religioso da umbanda e do candomblé.  
As letras e harmonias de Pedro Luis estão mais maduras e enxutas, o que lhe permite transitar com a mesma naturalidade entre diferentes parceiros: Roque Ferreira, Carlos Rennó, Suelly Mesquita, Lula Queiroga, Zé Renato, Lenine e até Manuel Bandeira, de quem musicou o poema "Cantiga" numa ótima versão com o grupo A Trombonada. 
Vale também registrar a presença de Zeca Pagodinho, que mostra que é um cantor de recursos muito mais amplos do que supõe o vão preconceito em relação aos seus "pagodes". Roberta Sá e Lenine também dão o ar da graça nos vocais. A primeira coroando com seu timbre adocicado a bela "Luz da Nobreza", parceria de Pedro Luis e Zé Renato. O segundo, em "4 Horizontes", fazendo o contracanto de uma melodia envolvente. "Estrada de quatro sentidos/ Encruzilhada de destinos/ Quanto mais flor, mais mulher/ Quanto mais velho, mais menino", cantam os dois parceiros num dos grandes momentos do disco. 
É, ao mesmo tempo, o mais elaborado e o mais pop dos trabalhos do grupo carioca.  Um disco que é não é simplesmente um disco de samba mas que mostra como o samba ainda é a grande força motriz da música brasileira. E ainda reafirma Pedro Luis como um dos grandes compositores de nossa época. 

Luiz Carlos da Vila

O samba perdeu Luiz Carlos da Vila. Discos-tributo e homenagens póstumas despontarão em breve, como sói acontecer nessas horas. E é bom que venham mesmo. O problema é repisar a velha narrativa do compositor popular de enorme talento que morre em dificuldades e sem o devido reconhecimento à sua obra. Eita Brasilzão!
Todos vão lembrar de "Kizomba, a festa da raça". Muitos vão lembrar de "O show tem que continuar". Mas Luiz Carlos deixa uma obra que vai muito além desses dois sucessos. Nos anos 70, ele foi um dos principais protagonistas do movimento que redesenhou instrumentalmente o samba no Brasil via Cacique de Ramos. Na onda que jogou aquela turma na celebridade (Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, etc), ele foi gravado por Beth Carvalho ("Doce refúgio") e chegou ao primeiro disco em 1983. Um belo registro que trazia "Bandeira da fé", "Solidão e gás" e "O sonho não acabou", uma homenagem a Candeia que, nos anos 90, transbordaria em um CD antológico.
Ao todo, foram oito discos de carreira - sem contar com sua participação em outros projetos como o "Esquina Carioca", que reuniu Moacyr Luz, Beth Carvalho, João Nogueira e Dona Ivone Lara - e dezenas de grandes composições que pavimentaram o caminho de Luiz Carlos ao olimpo do samba.
Abaixo, um vídeo do poeta.

Duas perguntas para Carlos Zilio

Cite um vício das artes plásticas que considera abominável.
Zilio - O aspecto mundano. É o aspecto da atividade artística que demanda uma exposição pública do artista e não somente da sua obra. É o lado da celebridade das artes, existe uma sociabilidade superficial. A vitrine vale mais do que o trabalho.

Que virtude mais preza na boa arte?
Zilio - Um bom trabalho de arte tem uma relação de integridade entre os meios e a poética.

Os trechos acima foram retirados de uma entrevista do artista plástico Carlos Zilio ao jornal Estado de São Paulo publicada no último dia 12 de outubro. Ao lado, a obra Visão Total, produzida por Carlos Zilio em 1966.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A guerra segundo Kusturica

Não recordo o autor da frase, mas lembro que, na primeira vez que assisti a Underground - Mentiras de Guerra (1995), o comentário estampado na capa do VHS - segundo o qual aquele tratava-se do filme de guerra que Fellini não fizera - foi decisivo para me fazer encarar as quase três horas do longa-metragem do iugoslavo Emir Kusturica. Antes de mais nada porque sempre me pareceu que Fellini havia feito, sim, filmes de guerra. Ou pelo menos contemplado, a seu modo, o tema da guerra. Em particular, em La Nave Va e Ensaio de Orquestra. Mas depois de assistir ao filme do iugoslavo, percebi que não era apenas Fellini que não havia filmado a guerra como Kusturica. Na verdade, nenhum outro diretor havia feito um filme sobre a guerra - ou sobre o desatino da guerra - como Underground.
Recentemente, o filme saiu finalmente em DVD pela coleção Lume, da Lume Filmes. Se você tiver de escolher apenas um filme na filmografia desse diretor iugoslavo, nem hesite: é Underground. Agora, o difícil vai ser você, depois de conferir a saga tragicômica vivida por Ernst Stötzner e Lazar Ristovski (foto acima), querer ficar apenas num único de filme de Kusturica, que também dirigiu coisas sublimes como Vida Cigana (ou O tempo dos Ciganos, dependendo da versão) e O ano em que papai saiu em viagem de negócios.

Observatório do dia

"Se você chegar a um país e quiser saber da liberdade política que têm seus cidadãos, basta ler os jornais desse país. Se dizem que o governo é admirável, seus mentores maravilhosos, dignos e capazes, é porque os governantes são déspotas que liquidaram com a liberdade de expressão. Agora, se os jornais dizem que os governantes são incapazes, hipócritas e estão levando o país à ruína, o país está, pelo menos politicamente, muito bem".
Millôr Fernandes, em O livro vermelho dos pensamentos de Millôr.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Arte do encontro


Um show memorável. Moyseis Marques veio, viu e venceu. Quem foi ontem no Amici´s conferiu como o cara tem carisma e como é um dos grandes intérpretes do País em nossos dias. Simples, sem afetações, Moyseis mostrou seu trabalho e conquistou o público. Vou me permitir a indiscrição e, talvez embalado pela alegria pós-evento, dizer que saímos todos envaidecidos com os elogios tecidos à nossa banda, que aprendeu imensamente com mais essa jornada do projeto Policarpo Convida. Destaque para a perfomance do mestre Zé Renato, um dos maiores músicos do Brasil e que conquistou Moyseis logo na primeira bordoada. Pedro Miranda, Gallotti e, agora, Moyseis. Que honra tocar (e trocar informações) com essa rapazeada. E que honra também ser acompanhado de músicos tão talentosos e cheios de garra e de boa energia como os que formam o Policarpo. Ficam nossos agradecimentos para as mais de 200 pessoas que foram ao show. Isso só nos deu mais ânimo de seguir adiante com essa cruzada. Um tanto quixotesca é bem verdade. Mas que nos dá uma alegria danada a cada edição do projeto. Em novembro, teremos Moacyr Luz (!) e, em dezembro, Cristina Buarque (!!). Aliás, como diria o irmão da própria: tem mais samba no encontro que na espera.  No que diz respeito ao Policarpo, a gente tem trabalhado muito duro para fazer do samba uma feliz arte do encontro por essas bandas. 

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Adorno do dia


"A arte é a lembrança do possível contra o real que a oprime, alguma coisa como a compensação imaginária da catástrofe da história do mundo"

Theodor W. Adorno (foto), em Teoria Estética

O salvo-conduto do samba

Quase todo brasileiro - das mais diversas regiões do País - tem um samba para chamar de seu. Nem tanto uma música em especial, mas parte de um repertório ou de um determinado gênero de samba que consome e crê legítimo, puro, definitivo. Se essa onipresença revela a força seminal com que o ritmo se espalhou pelo Brasil, dialogando e assumindo traços que refletem as diferentes soluções culturais de cada Estado; também irriga um debate que, no mais das vezes, leva à segregação, à desinformação e ao bairrismo. Assim é que, para determinados ouvintes, samba é sinônimo de partido-alto ou de samba de enredo. Confunde-se também com o "pagode", termo que recebeu diversos e "equivocados" usos ao longo dos anos. Para outros, no entanto, samba "bom" é aquele que reflete uma sofisticação e um elitismo quase bossanovistas. Alguns ainda elegerão como autêntico o samba de certas manifestações caricaturais ou folclóricas espalhadas por ruas e terreiros do País.
Recentemente, um sambista carioca me falou que, a depender do local em que se apresentasse no Rio de Janeiro, tinha de escolher com muito apuro seu repertório sob pena de ser hostilizado pela platéia. Num samba da Zona Sul, por exemplo, valia o repertório de Chico, Gil, Gonzaguinha, Vinícius e outros "medalhões" da MPB. Composições de partideiros e versadores da Zona Norte ou mesmo de grandes intérpretes como João Nogueira e Roberto Ribeiro tinham de ser manejadas com muita discrição. "Ih, já vai tocar pagode!", poderia acusar um xiita mais apressado. Já do outro lado do Túnel Rebouças, a pressão era inversa e a apresentação de um samba do Chico, do Gil, do Gonzaguinha, etc, poderia, de maneria fulminante, ser tachado de "elitista" e "arrogante".
Esse apartheid musical não é exclusivo do Rio de Janeiro e também não é novo. Basta lembrar das casas das tias baianas que, no início do século, reuniam, na sala de estar, a aristocracia e a burguesia carioca; e, no quintal, os malandros e trabalhadores da então Capital Federal. Todos embalados por gêneros como o lundu, o maxixe e o recém-nascido samba, que assumiam sentidos diferentes em cada cômodo da casa. De lá pra cá, essa separação manteve-se a mesma, ganhando apenas outros matizes: como o caso clássico da bossa nova, que, no fim dos anos 50, se apropriando de procedimentos harmônicos do jazz e suavizando o batuque dos morros e subúrbios cariocas, instaurou o samba da Zona Sul. Ou ainda do pagode, que de reunião festiva de músicos virou gênero musical, conquistou importantes faixas de mercado nos anos 80 e reanimou o samba na Zona Norte.
Mesmo entre os grandes gênios do samba, não foram todos que receberam o salvo-conduto de se mover entre os dois lados da trincheira. Noel Rosa e Ismael Silva talvez tenham sido os primeiros. Zé Ketti, Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola vieram em seguida. Cartola foi o maior deles. Até hoje, o mestre mangueirense é um dos raros que têm cadeira cativa em qualquer samba do País, seja um samba "Zona Norte" ou um samba "Zona Sul". Os motivos para essa imunidade diplomática são vários. A começar da riqueza poética e harmônica de suas composições, que chegaram a impressionar "eruditos" como Villa-Lobos e Carlos Drummond de Andrade, para quem Cartola era "poeta maior"; e ganharam ampla repercussão popular.
Em 1940, o maestro Leopold Stokowski, então uma celebridade internacional, veio ao Brasil comandando uma missão folclorista que percorria a América Latina registrando ritmos e melodias típicas da Região. No Rio de Janeiro, teve como cicerone Villa-Lobos, que convocou, entre outros, Pixinguinha, Donga, Jararaca e Ratinho para a célebre gravação no navio Uruguai patrocinada pela Columbia. Cartola foi um dos convidados mais festejados, tanto pelo maestro quanto pelo povo da Mangueira, que cantou em uníssono suas músicas quando da visita de membros da comissão ao Morro. "Villa-Lobos era uma espécie de meu padrinho. Me convidava para tudo que é programa. Dizia sempre: 'esse pretinho vai longe'", afirmava o sambista.
Quando gravou seu primeiro disco, em 1974, Cartola conseguiu unir no coro dos elogios à obra comentaristas de posturas absolutamente divergentes em relação ao destino e aos sentidos da música brasileira. O conservador Tinhorão, por exemplo, em sua crítica no Jornal do Brasil, recomendou ao público "comprar com urgência o elepê de Cartola" e "atentar bem para certas passagens de sambas de Cartola e comparar sua hermonia com o que os compositores da geração bossa-nova afirmavam ter sido a maior contribuição do movimento à música popular brasileira". Já o bossanovista Nelson Motta, em texto para O Globo, registrou o LP como "primeiro disco individual, antológico, pesado 'de obra', desse extraordinário compositor popular. Elepê assutadoramente simples, direto e inundado de poesia em seus sentidos mais fortes e vitais".
Também a figura carismática de Cartola, já apontado como mito pela imprensa desde os anos 30, contribui para aparar arestas dos dois lados do Rebouças. No efêmero Zicartola, ele conseguiu aglutinar em antológicas rodas musicais toda a fauna artística e intelectual que se pulverizava em infinitas correntes políticas e estéticas: entre eles, os bossanovistas, os CPCistas e os cultores do samba tradicional. Malandros e "rapazes de bem". Vale dizer também que, em sua posteridade, Cartola foi gravado por um leque de intérpretes dos mais variados setores da música brasileiro, sempre saudado como gênio por cada um deles e aplacando as diferenças menores entre intérpretes da "Zona Norte" ou da "Zona Sul". O samba é ao mesmo tempo vários e um só.
Tentar legitimar apenas um ou outro gênero é tarefa conjuntural para os tolos ou desinformados. Os grandes mestres, como Cartola, pairam gloriosos sobre todos eles, ensinando gerações e gerações de sambistas a perceber no traço democrático do samba uma de suas grandes riquezas.

Texto publicado originalmente na edição de 11 de outubro do jornal O POVO (Fortaleza-CE)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Retranca do dia


"O Brasil não forma mais meias, aquele jogador que organiza o time. Nos juvenis, já estão jogando no 3-5-2. O meia, com características brasileiras, tipo Gérson, não tem função neste esquema. São três zagueiros, dois alas, dois volantes, um jogador na criação e dois atacantes".

Paulo Autuori, técnico do Al-Rayan, do Qatar, ao comentar por que o futebol vai cada vez mais perdendo seu charme.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O dia de um escrutinador

Listas são sempre um problema. Mas contrariando orientações mais sensatas, decidi montar minha relação dos melhores discos de todos os tempos. Nesse cânone pessoal e intransferível, no entanto, a relação não é fechada, mas dinâmica. Mesmo porque muitos dos melhores discos de todos os tempos ainda não foram gravados, tenho fé. Assim, minha lista começa com os cinco melhores discos de todos os tempos. Na semana que vem, serão os dez; na semana seguinte, os quinze; e assim por diante até sabe Deus quando. Acho que é mais justo com a história. E dá para passar um bom tempo brincando de escrutinador.

A brincadeira começa no post seguinte.

P.S. E também aceito sugestões.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O uísque de Waldick

“O Frank Sinatra vem ao Brasil, canta com seu copo de uísque na mão, todo mundo acha lindo. Agora, se o Waldick toma seu uisquinho, aí ele é um cachaceiro!...”. A frase de Waldick Soriano foi lembrada por Zeca Baleiro em sua coluna na revista Istoé. O texto me chamou atenção para uma distorção que pauta o debate sobre música popular no Brasil. Artistas como Waldick Soriano, eminentemente popular desde um tempo em que não havia pirotecnias de marketing para promover alguém à condição de ídolo, são apreciados hoje sob um jogo de luz cult que transforma em heróis cantores outrora classificados como brega. Esse mesmo mecanismo iridescente - que vem acompanhado de discos-tributo, DVD, biografia, etc - redimiu, no altar do mercado, gente como Odair José, Fernando Mendes, Reginaldo Rossi, entre outros.

A questão é que o debate sobre o que é "brega" e o que é "chique" - ou outros termos que evidenciem a mesma dicotomia - na música brasileira é absolutamente vazio e apenas legitima uma pulsão teórica que vai reafirmar o mercado como senhor de todos os caminhos e conceitos. Poucos cantaram como Sinatra, mas poucos também cantaram com o vozeirão de Waldick. Os dois foram "malandros" e sustentaram seus personagens até o fim da vida. O principal produto que vendiam, a canção, era bem resolvida tanto no trabalho de um quanto no de outro. E o mais importante: a rigor, as letras cantadas por Waldick e Sinatra estão, na média, absolutamente niveladas, falam da dor e da delícia de ser homem, com iguais pitadas de chauvinismo, arrogância e grosseria em ambos os casos.

O livro Eu não sou cachorro não, de Paulo César de Araújo - o mesmo autor da biografia-problema de Roberto Carlos - tentou redimir ídolos como Waldick e Paulo Sérgio dentro da história oficial da MPB. E trouxe uma série de "revelações" difíceis de engolir para quem se acostumou a entender a história da nossa música apenas do ponto de vista dos nossos medalhões. No entanto, não conseguiu ir além da dicotomia brega/chique que deixa a conversa meio embeiçada. A grife não importa. O poder de comunicação da música costuma vazar pelo ladrão dos rótulos.
Baleiro erra feio ao escrever que Waldick talvez seja o mais brasileiro dos artistas brasileiros. Justamente porque sua música não é a mais brasileira. A música brasileira será sempre muito mais rica e surpreendente do que a medida do sucesso de fulano ou do poder de comunicação de cicrano. Esteja ele tomando o uísque do Waldick ou de Vinícius de Moraes. No entanto, Zeca acerta na mosca quando afirma que o cantor de "Eu não sou cachorro não" é uma face do Brasil que o Brasil não quer ver, que não reconhece como legítima, que folcloriza para reduzi-la.

Em resumo, é a profunda confusão em torno do mito "povo" - desde os tempos do CPC, inclusive - que esculhamba qualquer tentativa séria de levar adiante a discussão sobre música no Brasil. Daí porque limitar o debate ao fla-flu do brega x chique não vai nos levar a canto nenhum.
Um brinde, Waldick!