terça-feira, 26 de agosto de 2008

Uma nova Esperanza

Ela é linda. Toca contrabaixo pra valer - não é só pose. Canta divinamente bem - o que é ainda mais difícil se combinado com o toque do contrabaixo. É compositora de rara felicidade melódica. E ainda tem um nome angelical: Esperanza. Esperanza Spalding. Uma nova diva do jazz e uma nova paixão na minha discoteca. A presença de "Ponta de Areia", do Milton e do Fernando Brant; e "Samba em prelúdio", do Vinícius e do Baden; no repertório de seu disco de estréia (Esperanza) me chamou atenção. Mas confesso que fui escutar meio receoso de me deparar com mais uma daquelas milhares de cantoras negras que carregam no oversinging - aquele maneirismo exagerado, cheio de gritos e miados, que virou uma praga entre a nova geração de intérpretes norte-americanas. Pelo contrário. Esperanza canta e encanta sem exibicionismos - mesmo seus scat singings conseguem equilibrar sobriedade e exuberância - e transita sem aperreios pelo português e pelo espanhol. Além de fazer de sua voz mais um instrumento na química dos arranjos, dialogando com seus músicos numa sintonia muito fina. 

Segue a diva:

Quintanice do dia


"Bem o conheço. Num espelho de bar, numa vitrina, ao acaso do footing, em qualquer vidraça por aí, trocamos às vezes um súbito e inquietante olhar. Não, isto não pode continuar assim. Que tens tu de espionar-me? Que me censuras, fantasma? Que tens a ver com os meus bares, com os meus cigarros, com os meus delírios ambulatórios, com tudo o que não faço na vida?"
Mário Quintana (foto), O Espião.

Veja e uma visão tosca sobre educação

Reproduzo abaixo trechos do artigo do jornalista e deputado estadual Rui Falcão (PT-SP), publicado originalmente no site do jornalista Ricardo Noblat, que é uma ótima reflexão sobre o tipo de "jornalismo" praticado pela revista Veja. 

A revista Veja e a educação como mercadoria

Os meios de comunicação em geral têm dado uma contribuição relevante ao debate sobre o processo de melhoria da qualidade do ensino. Ao apontar falhas e mazelas no sistema de ensino e mostrar o que resultou de positivo nas mudanças que têm sido introduzidas nos últimos tempos, eles participam, de algum modo, do mutirão nacional que empolga a todos.

À onda de boas notícias parece à primeira vista ter-se juntado também a revista Veja, que dedica uma matéria de capa ao tema (edição de 20/08/2008), a pretexto de chamar atenção para os “primeiros sinais de inflexão para cima na curva da qualidade”. Na verdade, o objetivo da matéria é denunciar, com base em pesquisa realizada pela CNT/Sensus, “a mediocridade que se perpetua”, mediocridade que a revista vai identificar na orientação pedagógica atual, de que estaria imbuída a maioria dos professores, e em alguns textos de livros didáticos, de reconhecida inadequação.

(...) Em lugar de escola para a construção da cidadania, Veja propõe a educação como mercadoria, que exigiria como ambiente para a realização das transações apenas o mercado, a única ‘disciplina social” reconhecida. Nada além disso. Somente o mercado seria capaz de assegurar a liberdade, para o desempenho individual e profissional dos indivíduos, além de se apresentar como única medida da eficiência e garantia da eficácia.

(...) É nesse contexto que precisa ser compreendida a investida contra Paulo Freire, educador de renome internacional, reduzido por Veja ao “autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização”. Veja desrespeita a inteligência do leitor, ao fazer questão de ignorar que Paulo Freire, ao lado de Josué de Castro e de Milton Santos encontra-se entre os brasileiros acadêmicos mais conhecidos no exterior. 

(...) A Paulo Freire atribui-se o mérito – universalmente reconhecido pelos vários prêmios internacionais que recebeu, entre os quais o de Educação para a Paz, da UNESCO — de avançar no pensamento educacional, ao promover uma síntese das idéias de seus predecessores, como John Dewey. Para todos eles, o aluno está longe de ser um recipiente passivo no qual os professores depositam o seu estoque de conhecimento. Os alunos são os sujeitos ativos da educação – e o que deles se espera é que comecem por fazer as perguntas, que certamente lhes ocorrem da experiência de sua imersão no ambiente familiar e social. As respostas serão procuradas num exercício de imersão social semelhante, exercício praticado pela humanidade desde que se constitui em sociedade organizada, responsável pelas conquistas da cultura e civilização.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Quem te viu, quem te vê


Depois de tantas "aquarelas", a carreira de Emílio Santiago passou a patinar entre a falsa sofisticação de suas interpretações e um repertório dissonante de seu imenso potencial vocal. Mas nem sempre foi assim. Em 1975, quando estreou em disco, reeditado agora em CD pela Cid (a capa, na foto ao lado), Emílio era puro suingue. Acompanhado por um time de feras poucas vezes reunido na gravação de um disco (ninguém menos que Azimuth, Copinha, Dori Caymmi, Durval Ferreira, Hélio Delmiro, Ivan Lins, João Donato, Vitor Assis Brasil, Márcio Montarroyos, Wilson das Neves e Zé Bodega lhe acompanharam naquele bolachão), Emílio esbanjava balanço e garra em faixas como "Batendo a porta" (João Nogueira e Paulo César Pinheiro), "Brother" (Jorge Ben) e "Nega Dina" (Zé Ketti). A distância entre aquele cantor que despontava como uma grande promessa da música brasileira e o hoje intérprete de canto asséptico é tamanha que, em geral, as pessoas que escutam pela primeira vez sua versão para "Bananeira", clássico de João Donato e Gilberto Gil que abre o disco, não lhe reconhecem no meio do arranjo primoroso de João Donato. 
Abaixo, aos incrédulos, a gravação de "Bananeira" na voz e no suingue de Emílio Santiago. 

Mal-estar do dia

"Não faz muito sentido falar de vanguarda no mundo pós-moderno. Certamente, o mundo pós-moderno é qualquer coisa, menos imóvel - tudo, nesse mundo, está em movimento. Mas os movimentos parecem aleatórios, dispersos e destituídos de direção bem delineada (primeiramente e, antes de tudo, uma direção cumulativa). (...) As artes dos nossos dia não se mostram inclinadas a nada que se refira à forma da realidade social. Mais precisamente, elas se elevaram dentro de uma realidade sui generis, e de uma realidade auto-suficiente nesta".
Zygmunt Bauman (foto), no livro O Mal-estar da pós-modernidade.

Veja que responsabilidade

Parece piada, mas a revista Veja, por conta de seu aniversário de 40 anos, vai promover um seminário com o nome de O papel da Imprensa: o fortalecimento das instituições políticas. Na pauta, "as funções e responsabilidades da imprensa perante a sociedade civil". Não bastasse o sistemático desrespeito que Veja comete semanalmente aos parâmetros mais comezinhos do bom jornalismo, a idéia do seminário soa ainda mais cínica por conta de seu mediador: ninguém menos que o colunista e blogueiro Reinaldo Azevedo, um dos mais articulados estetas da baixaria e do espírito anti-democrático na chamada grande imprensa.
Aos que ainda não sabem, um exemplo do conceito de "jornalismo" praticado por Reinaldo é a polêmica que mantém com o jornalista Luiz Nassif, conduzida num tom dos mais rasteiros, apelativos e afetados de que se tem notícia na imprensa brasileira. Não pelos escritos de Nassif. Mas pela maneira como Reinaldo se colocou no "debate", em especial através das postagens em seu (dele, Reinaldo) blog. Em um de seus escritos, Azevedo ataca Nassif em termos singelos: "O vagabundo achacador gosta de incitar o ódio e o preconceito em cima das doenças dos outros, mas quero ver quando descobrirem as g... que esse mascate já teve no anus. Por que desse canalha eu não duvido nada. Era tão ético, tão racional, tão sério… e revelou-se um batedor de carteiras, um misero vendedor de materias capaz de envergonhar um PHA". 
Isso é o que se pode chamar de responsabilidade de imprensa, "né não"?
P.S. - A charge acima foi retirada do blogo masquemario.net

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Banalogia do dia


"A admiração seleciona, elege, ama, assume, esclarece, propõe. Admirar é intervir política e culturalmente. Em meio a tudo isso, Caetano (Veloso) ainda nos ensina, pelo exercício da admiração, a nos sentirmos mais ligados ao mundo, à cultura de nosso tempo: a admiração nos prende amorosamente à terra, renova e multiplica em nós, a cada vez, as razões de viver".
Francisco Bosco, no ensaio "Ou Não", do livro Banalogias

Lúcio Rangel: entre o samba e o jazz

Esbarro na livraria com Samba, Jazz e outras notas, coletânea de artigos de Lúcio Rangel (1914-1979) organizada por Sérgio Augusto e publicada pela Agir no ano passado. Confesso que mais me atraiu a assinatura de Sérgio nos créditos da organização do que propriamente o interesse no trabalho de Lúcio, de quem desatentamente ouvira falar em textos sobre música popular escritos por outros autores. Por inexplicáveis razões, sempre havia passado ao largo da obra de Lúcio como crítico musical. Santa ignorância! À medida que avançava na apresentação do livro, escrita por Sérgio, percorreu-me um arrepio na espinho: eu estava simplesmente diante do trabalho de um dos maiores pensadores e estudiosos da nossa música. 
A leitura que se seguiu, então, foi duplamente avassaladora: havia o afã em logo me inteirar da obra daquele gigante ao qual nunca creditara tanta importância; e havia também o prazer da leitura em si, motivado pela clareza e pelo vigor das análises de Lúcio. Entre textos sobre jazz, choro e, principalmente, samba, acumulados caudalosamente ao longo de mais de três décadas na imprensa carioca, Rangel foi um dos primeiros sistematizadores da nossa crítica no âmbito da música popular. 
Inicialmente, com sua pioneira coluna de música popular, publicada entre 1945 e 1947 no suplemento literário de O Jornal. Em seguida, com a sua Revista de Música Popular, lançada em 1954 com Pixinguinha na capa de estréia e um time de colaboradores em que despontavam gente como Mário de Andrade, Orestes Barbosa, Bororó, Vinícius, Rubem Braga, Di Cavalcanti, Sérgio Porto, Almirante, Millôr Fernandes, Paulo Mendes Campos, Thomaz Santa Rosa, Haroldo Barbosa, Guerra Peixe e Marques Rebelo. A publicação durou pouco mais de dois anos e, depois de virar relíquia de colecionadores, foi resgatada numa recente edição fac-similar patrocinada pela Funarte e produzida pela editora Bem-te-vi. 
Não bastasse sua trajetória de estudioso, divulgador e crítico, Rangel, que também era boêmio peso-pesado, também soube estar nos lugares certos nas horas certas, tornando-se protagonista da história de nossa música. Para resumir essa sua persona, basta dizer que foi ele quem apresentou Vinícius de Moraes a Tom Jobim, num distante 1956. Ao entrar num bar no Centro do Rio e avistar Lúcio, o poetinha lhe disse que precisava urgentemente de um novo parceiro musical para a ópera popular Orfeu da Conceição. Por problemas de saúde, Vadico (parceiro de Noel) não poderia assumir a tarefa. Incontinente, Lúcio indicou um jovem músico que tomava um chope a três mesas de onde eles conversavam. Tom Jobim logo aceitou o convite e todo sabemos no que deu.
Como não poderia deixar de ser, as análises de Lúcio não são consensuais. A posteridade tratou de lhe desmentir em uma série de posturas. Como no caso de sua pueril resistência ao jazz feito por brancos (desnecessário falar de Horace Silver, Chet Baker, Bill Evans, Stan Getz, entre muitos outros). Ou de sua birra em relação à Bossa Nova - apesar do respeito com que tratava a música de João Gilberto, Tom Jobim e Carlos Lyra. Em algumas de suas teses, Lúcio voltou atrás, como no caso de suas críticas a Carmen Miranda (a quem chamava de "baiana portuguesa de Hollywood" e com quem se reconciliaria) ou mesmo de sua resistência a Frank Sinatra (em quem, a princípio, não via mais que um "intérprete de enfadonhas baladas e romances") populares"). Mas, em geral, seguiu defendendo suas posições até o fim da vida. Como no caso de sua reticência em relação a Maysa, que, em sua ótica de crítico tenaz do samba-canção, nunca deixou de ser a personificação da "incompreensão total da verdadeira música brasileira".
Exageros à parte, um episódio mostra exatamente ao lado de quem Rangel esteve - ou melhor, quem esteve ao seu lado - na história de nossa cultura. No início de 1959, depois de ser violentamente agredido pelo violonista Fafá Lemos, que andava enfurecido com as críticas a seu respeito no Última hora, Lúcio recebeu 106 mensagens de solidariedade assinadas por celebridades de todas as áreas. De Pixinguinha a Carlos Drummond de Andrade, de Ary Barroso a Rubem Braga, de Paulo Mendes Campos a Ismael Silva. Ao lado de Fafá, ficaram apenas os colunistas sociais Ibrahim Sued (!) e Chuck (!!). 

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Ken Burns: um épico do jazz

"Mais americanos aprendem sua história através dos filmes de Ken Burns do que de qualquer outra fonte". A afirmação é do historiador Stephen Ambrose e revela um tanto da posição do documentarista Ken Burns dentro da vida cultural norte-americana. Autor de A Guerra Civil (1990) e Beisebol (1994), Burns é uma espécie de Eduardo Coutinho dos gringos. Não pela estética (que claramente se opõe pela delicadeza e pela espontaneidade de um e pelo rigor e montagem quase jornalística do outro), mas pelo reconhecimento quase unânime de que se tratam dos maiores documentaristas de seus países. Aliás, a moral americana talvez não permitisse o nascimento de um Eduardo Coutinho por aquelas bandas - no máximo, como se sabe, as galhofas e o atrevimento de um Michael Moore. O que também é verdade na mão contrária. Dificilmente, o humor e a cosmogonia brasileira fomentariam um documentarista tão vigoroso e peremptório quanto Burns. 
A guerra civil bateu recorde de audiência em sua estréia na televisão norte-americana, em 1990. Baseball (1994), por sua vez, é um épico de mais de 18 horas de duração e, assim como seu antecessor, arrebatou dezenas de prêmios dentro e fora dos EUA. Por fim, Jazz (2002), outro épico produzido para a TV, encerra a trilogia de Burns sobre a vida e a cultura norte-americana. No Brasil, o documentário foi exibido na GNT. A série completa foi reunida numa luxuosa caixa de quatro DVDs da Som Livre. Acabo de vencer todas as 13 horas de duração do documentário e posso lhes dizer que foi uma das travessias mais gratificantes que pude experimentar. 
Da criação do jazz - relatada por Winton Marsalis em episódios como a invenção da batida chamada "Big Four" - à sua fragmentação em infinitos subgêneros e seu ostracismo dentro da vida cultural dos Estados Unidos, Ken Burns nos conduz por um relicário de imagens e depoimentos dos grandes heróis da história dessa música que é uma das raras expressões artísticas genuinamente norte-americanas. Talvez apenas o blues e o hip-hop possam ostentar esse crédito. 
A série de Burns também chegou a inspirar uma coleção de CDs que fez muito sucesso em todo o mundo e através da qual muita gente se iniciou no gênero. Inclusive este blogueiro. 
Abaixo, um dos trechos do documentário. Trata-se da passagem em que Burns conta a história da gravação de A Kind of Blue, de Miles Davis, um dos maiores discos de jazz de todos os tempos - e também um dos mais vendidos. Não só porque reunia um time de estrelas (gente já consagrada ou que começaria a se consagrar com o disco) e que já ganhava antes de jogar: John Coltrane, Julian Cannonball Aderley, Paul Chambers e Bill Evans. Mas porque era todo fundamentado em escalas e modos e não mais na harmonia. 
Em resumo, um dos inúmeros Miles que vêm para o bem. 

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Memórias de Paulinho


Um dos disco mais bonitos da história do samba é este Memórias Cantando (1976), de Paulinho da Viola. Na semana passada, (re)encontrei sua versão em CD numa loja. E aqui vale uma dica a quem interessar possa: esta série da EMI, que traz todos os discos de Paulinho gravados entre 69 e 1979, remasterizados em Abbey Road, costuma sair de catálogo rapidinho, de forma que nem pensem duas vezes se quiserem completar a coleção do homem.
Bom, voltando ao disco, Memórias Cantando, como o nome já antecipa, resgata sambas de outros autores que marcaram Paulinho em sua infância e juventude. Nesse time, jogam "Nova Ilusão" (Claudionor Cruz e Pedro Caetano), "Pra que mentir?" (Noel Rosa e Vadico) e "Mente ao meu coração" (F. Malfitano), que aliás foi regravada recentemente no ótimo disco de sambas da Maria Rita. O disco também é formado por músicas de Paulinho compostas para relembrar o espírito de certas épocas, como "O carnaval acabou" e o partido "Perdoa", que, como o próprio Paulinho escreve no encarte do disco, foi feito "à maneira dos velhos sambistas que ficavam horas numa festa ou num boteco tirando versos".
Há ainda a regravação de "Coisas do Mundo, minha nega", dos sambas de sua lavra, um dos quais Paulinho mais gosta. Por fim, vale chamar atenção para o bem-humorado "Meu novo sapato", composto inspirado no balanço e na interpretação de cantores como Mário Reis e Sinhô e que tenta "reafirmar, através da letra, o incômodo e necssário surgimento do novo, questionando e querendo transformar a vida", segundo as palavras de Paulinho.
Os belíssimos encarte e capa do disco é assinado pelo inigualável Elifas Andreato, autor de capa similar para o antológico Memórias chorando, outro disco que Paulinho lançou em 1976 - junto com Memórias Cantando numa espécie de versão siamesa - e que foi responsável por uma nova onda de culto ao chorinho no País. Mas isso é história para um outro tópico.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Diálogo do dia

(...)
Morte: Como é, vamos ou não vamos?
Nat (olhando-a de alto a baixo): Ainda não acredito que você seja a morte.
Morte: Por que não? Estava esperando quem? Rock Hudson?
Nat: Não é isso.
Morte: Desculpe se o desapontei.
Nat: Não se desculpe! Sabe, é que sempre achei que você fosse um pouco mais alto, sei lá...
Morte: Tenho 1 metro e 60. Está bom para o meu peso.
Nat: Você se parece um pouco comigo...
Morte: E com quem queria que eu parecesse? Afinal, eu sou a sua Morte!
Nat: Me dê mais algum tempo! Talvez mais um dia!
Morte: Não dá pé.
Nat: Só mais um dia! 24 horas!
Morte: Para que mais um dia? O rádio disse que vai chover amanhã.
(...)
Woody Allen, A morte bate à porta (peça em um ato)

Desaprendendo o choro

O primeiro disco foi um choque. Para os puristas, o Tira Poeira veio com uma carga de informações e com uma proposta de liberdade de expressão rararíssimas vezes vistas na seara do choro, geralmente balizada por um tradicionalidade (para não dizer tradicionalismo e fazer o termo soar como patologia, o que nem sempre é verdade) que vai do formato das peças à abordagem de seus intérpretes. Não se tratava de reinventar o gênero, mas de injetar a melhor energia jazzística em cada tema. 
No segundo disco, lançado há coisa de três meses, a turma formada por Caio Márcio (violões e guitarras), Henry Lentino (bandolim), Samuel de Oiveira (sax), Fábio Nin (violão de 7) e Sérgio Krakowski ousou ir mais longe.  Os arranjos estão ainda criativos, as improvisações mais audaciosas e o repertório se distanciou dos clássicos do choro, rabiscando peças da MPB ("Arrastão", "Atrás da porta", "Feijoada Completa"), do forró ("Lamento sertanejo"), da bossa nova ("O morro não tem vez"), do rock ("Eleanor Rigby"), do jazz ("My favourite things") e da chamada música erudita ("Trenzinho caipira").  E tem também as participações de Olivia Hime, Lenine e Maria Bethânia.
E o resultado é... Bom, dizer que o resultado é choro poderia causar um mal estar entre alguns cultores do gênero. Dizer que é jazz também poderia maltratar, entre os ouvintes do ramo,certas almas mais afetadas. Quando o assunto é "purismo" e "sectarismo", aliás, há muita bobagem nas duas trincheiras. E é o que, então? Bom, é choro e é jazz. É um choro que se despreendeu das possibilidades existentes até então e passou a caminhar com outras pernas. E é um jazz que, apoiado nos instrumentos do choro, fez soar universal uma expressão de espontaneidade musical tipicamente brasileira. 
Em resumo, um discaço que o caro leitor e a cara leitora precisam escutar urgentemente para desaprender tudo o que sabiam sobre choro. E também sobre jazz. Ainda bem!

Segue aí um trechinho dos caras no youtube. (P.S. - Juro que quando aprender a postar trechos das músicas, vou disponibilizar os discos para vocês).

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A metamorfose do dia

"Quando Gregório Souza acordou certa manhã de uma noite mal dormida cheia de sonhos pertubadores, olhou seus pés que emergiam da outra extremidade da coberta curta e viu que tinha se transformado em Franz Kafka". 

Luis Fernando Veríssimo, Metamorfose (2001)

Em nome do pai

Para meu pai, Paulo Afonso, 
zagueiro do Ceará Sporting Club nos anos 60. 
Na foto, em pé, o quarto, da esquerda para a direita. 
(Colaboração do meu amigo-irmão Lúcio Flávio).

No estádio de minha memória
há craques, jogadas antológicas, gols inesquecíveis.
Em minha Shangri-La de torcedor, 
se refugia o melhor futebol do mundo,
que soube deter o tempo e é
 praticado apenas por poetas e anjos tortos,
heróis, fiéis escudeiros da arte de 
bem jogar bola.

Treinador de um time de lembranças 
que teimam em misturar alegrias e tristezas, 
quimeras e dolorosas realidades,
sou senhor absoluto do meu elenco. 
Meu time não comporta lugar para 
perna de pau nem futebol de resultados. 
Não há Luxemburgos, Dungas, Parreiras.
 Há apenas verdade e dança e arte e música e alegria e gols.

Nas quatro linhas das minhas lembranças, 
o sol da pureza dos dribles
sempre pára na cara do goleiro adversário.
E cega o técnico turrão, boçal, que arrota 
obviedades e embrutece o barro de nossas chuteiras.

Eu, torcedor, não admito impedimento para
a afirmação da beleza e do profundo 
humanismo que cerca cada passe. 

Meu pai zagueiro, capitão de minha seleção 
de todos os tempos, sempre se antecipa, 
elegante e inabalável, 
à dor ponta direita que, adversária, 
quer vencer nosso time. Sempre sabe a jogada correta 
para qualquer tristeza ponta esquerda que se aproxime da área, 
em meu coração.
Meu pai, zagueiro, sempre, não erra: 
apenas desentorta o tempo e deixa a bola correr redonda 
para a alegria de meus olhos.
E vira senhor de mim.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Uma grande dama do samba

Uma das grandes cantoras de samba do País tem seu talento medido em proporções iguais à de sua discrição. Ainda assim, seus discos antigos não costumam esquentar as prateleiras em sebos e, quand0 ganham edição em CD, costumam simplesmente evaporar das lojas e da internet. Essa cantora é Cristina Buarque, que para além de sua inúmeras qualidades como intérprete, é uma profunda conhecedora da história do samba. Dois CDs lançados recentemente dão uma boa dimensão da importância de Cristina para o gênero: Cristina Buarque e Terreiro Grande ao vivo e O Samba informal de Mauro Duarte. O primeiro é um encontro com um grupo de São Paulo que tem como carta de navegação o resgate de sambas antigos de compositores ligados às escolas de samba do Rio de Janeiro. O segundo é um CD duplo em que, acompanhada pelo grupo Samba de Fato, Cristina canta sambas inéditos de Mauro Duarte - um dos compositores mais melódicos desse métier. 

Vai aí uma canja do Samba de fato (ela é aquela senhora lá no canto)...



... E do Terreiro Grande. 

À margem da margem

O texto abaixo é formado por trechos de um artigo publicado no blog Fazendo Média, um endereço muito interessante para aqueles que estão interessados em discussões sobre jornalismo e cidadania.

"Um dos grandes desafios para a esquerda brasileira é compreender a nova configuração do trabalho.  (...).

É o que explica o geógrafo Milton Santos, em Por outra globalização: 'Uma boa parcela da humanidade, por desinteresse ou incapacidade, não é mais capaz de obedecer a leis, normas, regras, mandamentos, costumes derivados dessa racionalidade hegemônica. Daí a proliferação de ‘ilegais’, ‘irregulares’, ‘informais’'.

Marginalizada pela dinâmica excludente do sistema financeiro internacional, essa nova “classe” ainda não foi suficientemente esquadrinhada e, tampouco, encarada pela esquerda partidária como segmento social (...)

Milton Santos sugere algumas possibilidades para esse distanciamento dos partidos de esquerda: '(dentro dos partidos do progresso), são muitos os que (...) se rendem ao oportunismo eleitoreiro, limitando-se às respectivas mobilizações ocasionais, desgarrando-se, assim, do seu papel de formadores não apenas da opinião mas da consciência cívica sem a qual não pode haver neste país política verdadeira'. Em seguida, completa: 'as próprias esquerdas são levadas a dar mais espaço às preocupações eleitorais e menos à pedagogia propriamente política'.

Esse reencontro da esquerda com os trabalhadores é fundamental para que se possa combater, com alguma chance de vitória, as desigualdades sociais que a cada dia fazem novas vítimas".

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Frase do dia

"Já me sinto lá"
Do amigo e filósofo Arlindo Amora, dono do bar de mesmo nome, sempre que responde ao convite de alguém para um passeio, aniversário ou outro evento qualquer. 

Nelson Cavaquinho, o underground


Quando comecei a escutar samba, um cara que não saía do meu toca-discos era Nelson Cavaquinho. A descoberta de sua obra - e também de sua trajetória, através da biografia escrita por Flávio Moreira da Costa - foi cercada de um profundo encanto. Sua música - marcada por um lirismo absolutamente derramado, por um existencialismo casto e por uma indulgente religiosidade - não se comparava a nada que eu ouvira anteriormente. Sua voz roufenha e esganiçada, que para tantos soava risível, para mim era a expressão de uma entrega à música e à vida de músico (com seus excessos, seus dramas e suas alegrias) reservada apenas para alguns raros heróis. Aliás, até hoje, nenhum outro timbre - entre as dezenas de versões que suas músicas ganharam na posteridade - me soa tão bem com as soluções melódicas e harmônicas de sua música (ao mesmo tempo tão simples e geniais) quanto a voz de Nelson. 
Na época, ficava me perguntando por que um cara como o Nelson, um figura tão underground e a seu modo contestadora quanto ele, não era badalado para além do mundo do samba. Foi quando descobri que uma penca de outros bons contestadores, como Chico Buarque e Cazuza, por exemplo, eram seus fãs. Chico gravou "Cuidado com a outra" no precioso Sinal Fechado (1974). Já Cazuza chegou a gravar uma versão sublime de "Luz Negra" no disco que reuniu os melhores momentos do programa Chico & Caetano, da Rede Globo. Foi quando eu liguei as duas pontas da minha inquietação. 
Hoje, consegui um disco que há muito procurava. Trata-se de Nelson Cavaquinho, um LP fantástico, gravado em 1972 e reeditado em 1986 pela RCA Victor, que só agora chegou às lojas no formato de CD dentro da coleção Essential Classics, coordenado pelo titã Charles Gavin. 
A rigor, Nelson só tem três discos individuais em sua carreira, gravados entre 1970 e 1973. Os demais são tributos à sua obra ou colaborações com outros sambistas, como o antológico Fala Mangueira (1967) - em que divide as gravações com ninguém menos que Carlos Cachaça, Cartola, Clementina de Jesus e Odete Amaral.  Pois bem, na opinião desse humilde admirador da obra de Nelson, esse é o seu melhor registro solo em disco. 
No encarte, há um texto do Sérgio Cabral que também vale a pena ser lido. A seguir um trechinho: "Sempre tive um certo desprezo por um tipo de contestação que foi moda na música popular brasileira, por uma filosofia "underground" que predominou durante algum tempo, exatamente por causa de pessoas como Nelson cavaquinho, que já estavam nessa há muito tempo e os observadores não sabiam. Nelson Cavaquinho já fazia contracultura há mais de 30 anos e os nossos contestadores musicais procuravam o modelo internacional para fazer a sua, desrespeitando inclusive os princípios daqueles que os levaram a adotar a posição que tomaram. Nelson, sim, jamais se enquadrou nos padrões da moda, jamais criou visando ao consumo, jamais de rendeu aos padrões impostos". 

No youtube, há uns vídeos bem legais do Nelson. Segue um deles:

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Uma noite com Noel


Depois que a obra de Noel Rosa virou de domínio público, esperava-se que houvesse uma verdadeira corrida às canções do poeta da Vila. Não foi bem assim. Mas alguns projetos interessantes começam a vir à tona. É o caso deste Uma noite... Noel Rosa (Universal/MP,B discos), CD ao vivo que reuniu duas gerações de artistas que, em algum momento de suas carreiras (ou na carreira inteira) dialogaram com o samba. Da novíssima geração, estão presentes o grupo Anjos da Lua, que faz o acompanhamento instrumental de todas as gravações, Diogo Nogueira, Roberta Sá, Rodrigo Maranhão e Maurício Pessoa. Da "velha guarda", por assim dizer, cantam Ney Matogrosso, Zé Renato, João Bosco e Zeca Pagodinho (os dois últimos registrando suas participações em estúdio). O disco não traz grandes surpresas dentro do escopo da obra de Noel (apenas a pouco badalada "Silêncio de um minuto"), mas resulta num bom registro pela alegria e pela competência de músicos e intérpretes que embalam todas as faixas.

Abaixo, tem um trechinho do show.

E por falar em cultura...

"O supérfluo, coisa muito necessária".
Voltaire, no poema O mundano (1736)

Enfim, Alexis


O arranjo para "Lôro", do Egberto Gismonti, me ganhou na primeira audição. Quase oito minutos de virtuose e entrosamento perfeito desses músicos de Campinas (SP). O Alexis Bittencourt Trio, formado por Alexis (guitarra), Zé Alexandre Carvalho (contrabaixo) e Ramon Montagner (bateria) gravou um disco prodigioso - Enfim, que saiu pela Tratore - e desponta como uma das mais interessantes formações musicais de nosso dias. O jazz dialogando sem mesuras com o samba e com o choro. Vale a pena conferir as versões inspiradas para "Corsário", do João Bosco; "Noites Cariocas", do Jacob; e "Sapato Velho", do Boca Livre. Há também as músicas do próprio Alexis, como "Chuva e sol", "Trava Língua"  e "Fez um pedido", que alcançam resultados desiguais mas não atravessam o andamento do disco. Aí vai o link do myspace do cara, onde vocês vão poder escutar as músicas.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Pedro Miranda

Fuçando o youtube, tenho a grata surpresa: um vídeo em que eu e minha rapazeada do Policarpo e a Estrela de Madureira aparecemos tocando com o Pedro Miranda, na roda de samba do Amicci´s. Era o comecinho de julho. Um grande cara e um tremendo cantor, o Pedro. Pandeirista de impressionar meu amigo Ângelo, o melhor pandeiro dessas latitudes cearenses. Uma alegria inesquecível para este que vos escreve. Dois meses antes nem me passava pela cabeça dividir o palco com um sambista como o Pedro - que eu conhecia das gravações e composições com a Teresa Cristina e do ótimo Coisa com Coisa, primeiro disco dele. Pois o homem comprou a nossa idéia - minha do Thales, da Lanna e do Alisson, que montamos o "Policarpo Convida" - e se tacou do Rio de Janeiro para cá, com uma bagagem carregada de simplicidade, bom humor e talento. Veio, viu e venceu!

Futebol

"Futebol: o pio do povo!"
Millôr Fernandes em A Bíblia do Caos (L&PM)

Os sinais de Jarrett


Três músico e o céu como limite. Life between the exit signs (1967) marca a estréia de Keith Jarret como protagonista principal de um disco. Ao lado de Charlie Haden, no contrabaixo; e Paul Motian na bateria, o pianista norte-americano amplia absurdamente as possibilidades de expressão musical de um trio de jazz. A cada nova audição, uma sutileza revelada, a descoberta de um novo detalhe que descortina a coerência inteligentemente articulada ao aparente caos.
Depois que me apaixonei por este disco, me aconteceu uma coisa engraçada: tenho dificuldade de passar de "Lisbon Stomp", a faixa que abre o CD - comprado graças a uma reedição da Warner. Não por fastio. Pelo contrário. A cada audição da faixa, eu já volto a bendita para o começo para escutar de novo. And again, and again, and again... 
"Me pediram para falar alguma coisa sobre a música nesse disco.  Eu gostaria muito; no entanto, se houvesse palavras para expressar isso, não haveria necessidade para a música", foi a frase de Keith para definir sua cria. Por isso, vamos parando por aqui e ouçamos o homem. Abaixo, uma apresentação solo de Jarrett nos anos 90...



... e o trio em plena forma numa apresentação dos anos 70.


Estultilóquio do dia

"Antigamente, as pessoas tomavam ácido. Hoje, só tomam antiácido".
Gerald Thomas, na Folha, metendo o pau na retrospectiva de Duchamp em cartaz no MAM-SP.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Bem vindos

O Talabarte inicia suas operações. Na pauta, samba, jazz, chorinho e outros desatinos. Não sei ao certo no que vai dar. Vejamos...